Tratamento da dor pela cinesioterapia – I

Neurofisiologia e neurociência da dor – Atualizado em 24/06/2022

Olá colegas e futuros colegas! Inicio aqui uma série sobre o estudo da dor, educação em dor e como tratar a dor através da cinesioterapia. É muito importante que você entenda os conceitos atuais sobre dor e saiba diferenciar que tipo de dor está sendo referida pelo paciente, compreendendo melhor o que acontece e o que fazer para ajudar.

O tema dor é abordado brevemente ao estudarmos sobre as patologias em geral. No entanto, estudar separadamente e dar ao estudo da dor a sua devida importância é vital para sua efetiva compreensão, sendo também muito produtivo na sua prática clínica. Busquei o que há de melhor no assunto, inclusive traduzi e disponibilizarei a terminologia da IASP.

Em um estudo realizado com a aplicação de questionários para pacientes e profissionais de saúde, chegou-se à conclusão que os profissionais subestimam a capacidade dos pacientes entenderem da sua dor, e que não deveriam subestimar. Esse estudo constatou que, embora tanto profissionais de saúde quanto pacientes tenham um conhecimento relativamente pobre sobre a neurofisiologia da dor, informá-los melhora significativamente o conhecimento em ambos os grupos.

Informações atuais e precisas sobre dor não formam a base teórica do tratamento e não são apresentadas aos pacientes como parte de um programa de gestão da dor crônica. A falta de informações é uma barreira primária para a compreensão da dor, tanto para clínicos quanto para leigos. Essa falta de informações pode inclusive limitar a eficácia de qualquer intervenção terapêutica!

É de enorme importância compreender a neuroplasticidade, a memória de dor, o início de cronicidade, os mecanismos que explicam comportamentos de dor e as consequências a longo prazo da dor crônica no encéfalo. É muito produtivo utilizar a estratégia biopsicossocial para avaliação da dor e da incapacidade, uma vez que esta interfere na natureza multidimensional da dor em domínios relevantes para a prática. Com todo esse saber devidamente revisitado, podemos enfim utilizar os conceitos de educação em dor e usar uma perspectiva centrada na pessoa para formular estratégias de intervenção colaborativas.

A existência da dor

O que conhecemos por dor é a resposta do sistema nervoso central a um estímulo neural. Não é obrigatoriamente algo que começa onde existe uma lesão, como uma dor por hérnia de disco ou cálculo renal. Pode existir dor e não existir lesão tecidual. E pode haver lesão tecidual e não existir dor, principalmente quando a lesão não causa perturbação biomecânica ou funcional. Para que exista dor, é necessário ocorrer um mecanismo que envolve detecção, alarme e resposta.

  1. Nocicepção (detecção)
  2. Sensibilização (alarme)
  3. Dor (resposta)

Quando houver perturbação desse mecanismo poderemos ter uma resposta dolorosa exacerbada, chamada de hiperalgesia. Poderemos ter também dor a estímulos que não são dolorosos, como sentir dor ao receber o vento do ar condicionado, o que é chamado de alodinia.

Algumas pessoas não sentem dor, como nos casos em que a insensibilidade à dor é congênita (genética), tornando essas pessoas insensíveis a cortes, fraturas ou queimaduras. Isso é um problema sério e muitos desses indivíduos não conseguem atingir a vida adulta e, quando conseguem, a presença de sequelas é praticamente inevitável. Sentir dor é fisiologicamente necessário em algumas situações, apesar do incômodo causado.

1) NOCICEPÇÃO(detecção)

É importante não confundir nocicepção com dor nociceptiva. Nocicepção é o processo neural de identificação e codificação de estímulos nocivos ou potencialmente perigosos ao corpo. Não há relação direta com a existência de dano tecidual. A nocicepção é apenas a detecção do estímulo que provoca uma resposta do sistema nervoso central, que decidirá se haverá dor ou não.

O primeiro processo da nocicepção é a decodificação de sensações mecânicas, térmicas ou químicas em impulsos elétricos pelos terminais nervosos especializados denominados nociceptores.

Os nociceptores são terminações nervosas livres dos neurônios de primeira ordem, cuja função é preservar a homeostasia tecidual, assinalando uma injúria potencial ou real.

Os neurônios de primeira ordem são classificados em 3 grupos segundo seu diâmetro, seu grau de mielinização e sua velocidade de condução: Fibras Aβ(beta), Fibras Aδ(delta) e Fibras C.

Nem todo estímulo é doloroso

Estímulos de pressão ou térmicos leves são identificados pelos receptores de pressão e temperatura da pele e não ativam os nociceptores, que possuem um limiar de ativação mais alto. Esse limiar de dor é a intensidade mínima a partir da qual o estímulo é considerado danoso.

Uma vez que o estímulo térmico, químico ou mecânico ultrapasse o limiar de dor, é iniciado o estímulo nociceptivo que inicia diversas alterações neuroendócrinas, promovendo um estado de hiperexcitabilidade do sistema nervoso periférico e central.

As 4 etapas da nocicepção

A nocicepção inicia-se com a transdução(1), que é a forma como o sistema nervoso codifica os estímulos que são captados pelos sensores e, via potencial de ação, realiza a transmissão(2) dessas informações de ameaça através das vias espinotalâmica e espinoreticulotalâmica que, por sua vez, se conectam com diversas áreas do cérebro e modulam(3) o estímulo, aumentando ou reduzindo sua intensidade. Ao chegar ao cérebro, há a percepção(4) sobre a real ameaça desse estímulo, sendo produzida a resposta de dor caso a ameaça seja percebida como efetiva.

A nocicepção pode ser considerada como uma cadeia de três neurônios, com o neurônio de primeira ordem originado na periferia e projetando-se para a medula espinhal; o neurônio de segunda ordem ascendendo pela medula espinhal e o neurônio de terceira ordem projeta-se para o córtex cerebral.

2) SENSIBILIZAÇÃO(alarme)

É o aumento da capacidade de resposta dos neurônios nociceptivos a entradas normalmente supraliminares(acima do limiar de percepção da dor). Quanto maior o limiar de dor, mais forte deverá ser o estímulo para ativar os nociceptores. Quanto menor o limiar de dor, mais fraco poderá ser o estímulo para ativar os nociceptores.

Na sensibilização ocorre uma atividade neuronal aumentada, que ultrapassa o limiar da dor. A sensibilização pode ocorrer tanto no sistema nervoso central como no periférico.

Sensibilização periférica

Clinicamente, identificamos a sensibilização periférica nos sinais clássicos de inflamação local, como numa entorse de joelho ou tornozelo, onde evidenciamos alguns eventos típicos da sensibilização periférica.

Inicialmente ocorrem edema, hiperemia e dor ao toque em razão da sensibilização nociceptiva, que é a sensibilização dos nociceptores periféricos.

A dor ao toque ocorre também na região que circunda a lesão mas que não está lesionada, por ativação dos nociceptores silentes.

Podemos ter também sensibilidade aumentada a estímulos no local da lesão, como dor ao toque leve, chamada de hiperalgesia.

O aumento de sensibilidade local está diretamente relacionado com a redução do limiar de dor, onde estímulos de menor intensidade passam a estimular o sistema nervoso e causar dor.

Ocorre num segundo momento a inflamação neurogênica, que é o aumento do processo inflamatório após a inflamação inicial por liberação de neurotransmissores, via nervo periférico.

Há também aumento da atividade neuronal simpática, por conexão do sistema nervoso simpático no local da lesão, liberando substâncias sensibilizantes.

Quando houver lesão de nervos periféricos haverá descarga ectópica, que é a dor tipo choque provocada por lesão na bainha de mielina do nervo periférico.

Sensibilização central

Ao se tratar de sistema nervoso central temos maior probabilidade de resposta exacerbada. É aqui que tudo acontece, portanto as respostas têm maior potencial.

Na sensibilização central podemos ter a ocorrência do mecanismo de somação temporal(wind up), onde ocorre resposta de dor aos estímulos acumulados e repetitivos de intensidade semelhante recebidos pelos pelos neurônios nociceptivos na medula, estímulos esses que normalmente não causariam dor. É o que ocorre naquela dor crônica persistente que, sem motivo aparente, passa a incomodar mais, a dor piora com a realização repetida do movimento, o que não significa que a lesão está piorando.

Podemos ter também um aumento dos campos receptivos, que é a ativação de mais neurônios para participar da sensibilização, amplificando a área de dor.

A desinibição é a perda da capacidade de ativação do sistema modulatório inibitório descendente, com liberação de neurotransmissores excitatórios e desequilíbrio de atividade a favor desses neurotransmissores e alterações de segundo mensageiro, causando redução da produção de neurotransmissores inibitórios da dor. Portanto ocorrem modificações corticais, ou seja, mudanças na estrutura e função do cérebro.

Identificando a sensibilização central

A dor pode se apresentar de forma localizada, regional ou generalizada. Geralmente uma dor localizada nos sugere que há pouca sensibilização central e uma dor regional sugere maior probabilidade de sensibilização central. Já a dor generalizada é um estágio onde podemos ter uma sensibilização central importante. Nesse caso a dor é forte e difusa.

Clinicamente identificamos a sensibilização central por:

1. sensibilidade excessiva: barulho, cheiro, luz e a temperatura podem produzir ou aumentar a dor.

2. desproporção entre exame subjetivo e objetivo. A relação de causa e efeito é incoerente.

3. distribuição irregular da dor: A dor ocorre de forma bilateral, ou muda de região.

4. intolerância ao movimento sem inflamação ou lesão que o impeça.

5. hiperalgesia e alodínia

6. redução do limiar e da tolerância à dor

Sensibilização x habituação

Outro conceito muito importante é o de habituação, que é o oposto de sensibilização. A sensibilização é o excesso da atividade neuronal e a habituação é a acomodação desse excesso de atividade neuronal. Com exercícios físicos estimulamos a habituação, fazendo com que a atividade indicativa de perigo dos neurotransmissores seja reduzida, desligando os alarmes do sistema nervoso.

3 – DOR (resposta)

Dor é a resposta que ocorre após a sensibilização alertar o sistema nervoso central que houve um estímulo captado pelos nociceptores.

De acordo com o pesquisador Moseley, dor é uma resposta perceptiva de proteção que pode ser evocada por informações sensoriais, psicológicas e contextuais que sugiram ao cérebro que o corpo está em perigo.

Seis pontos-chave e etimologia

Segundo a IASP, a dor é uma experiência sensorial e emocional desagradável associada ou semelhante a uma lesão tecidual real ou potencial.

1) A dor é sempre uma experiência pessoal que é influenciada em graus variados por fatores biológicos, psicológicos e sociais.

2) Dor e nocicepção são fenômenos diferentes. A dor não pode ser inferida apenas pela atividade nos neurônios sensoriais.

3) Através de suas experiências de vida, os indivíduos aprendem o conceito de dor.

4) O relato de uma pessoa de uma experiência como dor deve ser respeitado.

5) Embora a dor geralmente tenha um papel adaptativo, ela pode ter efeitos adversos na função e no bem-estar social e psicológico.

6) A descrição verbal é apenas um dos vários comportamentos para expressar dor; a incapacidade de se comunicar não nega a possibilidade de um animal humano ou não humano sentir dor.

Dor e lesão: uma relação instável

Quatro tipos de relações possíveis entre a dor e a lesão, que ilustram o amplo espectro do fenômeno dor:

1. Lesão sem dor – a incapacidade de sentir dor, apesar da lesão (insensibilidade congênita à dor ou analgesia congênita).

2. Dor sem lesão – dor espontânea na ausência de estimulação nociva (fibromialgia).

3. Persistência da dor após a cura da lesão (Síndrome Complexa de Dor Regional).

4. Dor desproporcional à gravidade da lesão. (RONALD MELZACK E PATRICK WALL. O DESAFIO DA DOR. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 1987).

Classificações da dor

De acordo com sua origem a dor pode ser classificada como dor nociceptiva (somática ou visceral); dor neuropática(periférica ou central) ou dor nociplástica (antigamente chamada de psicogênica).

Dor nociceptiva

A dor nociceptiva é o tipo de dor que vem de danos nos tecidos, como uma contusão, um corte ou uma queimadura. A dor nociceptiva é iniciada com a estimulação de terminações nervosas livres, que são as terminações sensoriais mais simples de um nervo aferente e estão distribuídas por todos os tecidos corporais, sobretudo na pele.

As terminações nervosas livres são responsáveis pela detecção de estímulos térmicos de calor e frio (termoceptores), estímulos mecânicos de toque, pressão e estiramento (mecanoceptores) e finalmente a dor (nociceptores).

Os nociceptores são neurônios sensoriais encontrados por todo o corpo humano capazes de enviar sinais que causam a percepção da dor por meio de axônios, que se estendem na direção do sistema nervoso periférico em resposta a um estímulo potencial ou real de dano tecidual. Seus corpos celulares estão localizados na cadeia ganglionar trigeminal (face) e na raiz ganglionar dorsal (restante do corpo humano).

O disparo dos nociceptores na transmissão elétrica se dá quando os limiares dos estímulos químicos (íons potássio, bradicinina, serotonina, histamina e enzimas proteolíticas), mecânicos ou térmicos são superados. Alguns nociceptores são também chamados de polimodais por responderem a mais de um tipo de estímulo.

Podemos classificar os axônios dos nociceptores em dois grupos:

Fibras “fibras Aδ” (A Delta): são mielinizadas, compõem o trato neoespinotalâmico, são capazes de conduzir um potencial de ação da ordem de 5 a 30m/s em direção ao sistema nervoso central, caracterizando a dor aguda e bem localizada

Fibras axonais “tipo C”: são amielínicas, compõem o trato paleoespinotalamico, são mais lentas (0,5 a 2m/s), caracterizando a dor mal localizada e contínua.

A dor nociceptiva origina-se em duas fases. A primeira fase é mediada pelas fibras de rápida condução, fibras A Delta (dor aguda, extrema), e a segunda fase pelas fibras de condução lenta do tipo C (dor prolongada e menos intensa).

As sensações dolorosas agudas, assim como as sensações térmicas e táteis convergem para o tálamo, uma rede de interpretação sensitiva da dor. Alguns dos núcleos do tálamo emitem projeções ao córtex cerebral, tornando possível a consciência da sensação dolorosa.

Dor neuropática

A dor neuropática acomete 9% a 10% da população em geral e pode ser classificada em 2 grupos: 1)dor crônica com características neuropáticas e 2) dor neuropática associada a condições específicas.

O desenvolvimento de ferramentas de triagem simples utilizando questionários (DN4, escala de dor de Leeds, LANSS, entre outros) ajudou a estimar que a dor neuropática afeta por volta de 7% a 10% da população, sendo mais comum em mulheres e em pessoas com mais de 50 anos. A dor neuropática pode estar associada a sinais sensoriais anormais clinicamente caracterizados por:

Dor espontânea: contínuo (frequentemente relatada como queimação contínua) ou paroxismos (espasmo agudo ou convulsão);

Dor evocada: em alodínia (estímulos sensoriais que normalmente não provocam dor) ou hiperalgesia (aumento excessivo do estímulo doloroso).

Em alguns pacientes, a lesão nervosa desencadeia alterações nos neurônios nociceptivos que se tornam anormalmente sensíveis e desenvolvem atividade espontânea patológica. Esse fenômeno pode levar a dores espontâneas, dor aguda, assim como hiperalgesia ao calor ou frio.

Entre as dores neuropáticas associadas a condições específicas, as mais comuns são a neuropatia diabética; a neuralgia pós-herpética; a neuralgia do trigêmeo; a radiculopatia cervical, a radiculopatia lombar e as polineuropatias medicamentosas e infecciosas.

Dor nociplástica

A dor nociplástica surge da nocicepção alterada, como se as vias nociceptivas sofressem modificações que as sensibilizassem e as modificassem e a dor acontecesse de modo espontâneo e independente da presença de lesão tecidual, causando a ativação de nociceptores periféricos.

Um dos fatores para sua ocorrência é o estresse emocional e a depressão. É muito comum também que a dor nociplástica venha acompanhada por fadiga e sono não reparador. Seja ela do tipo nociplástica isolada, como ocorre na fibromialgia ou cefaleia tensional, ou seja ela do tipo nociplástica mista, como na lombalgia crônica, o manejo da dor crônica nociplástica não pode ser realizado apenas por uso de medicamentos. Eles poderão ser necessários, mas é fundamental que o paciente tenha apoio psicológico por meio de uma equipe de saúde, que tenha suporte familiar e que também participe ativamente de programas que contribuam para mudanças de estilo de vida e manejo do estresse emocional.

Quando há mais de um tipo de mecanismo pode estar presente, devemos verificar se há predomínio.

Dor aguda ou dor crônica?

A dor pode também ser classificada pelo início de sua ocorrência, sendo dor aguda até 3 meses e dor crônica há mais que 3 meses.

A dor crônica pode ser classificada como primária ou secundária e possui algumas outras subdivisões, como dor oncológica ou dor pós-traumática. De acordo com a OMS, apenas um em cada quatro pacientes com dor crônica recebem tratamento adequado e mais da metade dos pacientes com lesões neurológicas desenvolvem dor crônica.